Vamos nos organizar: não há fim para a luta por inclusão.
Quem disse que "diversidade e inclusão" vai acabar?
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Parece que a fala do Trump na véspera da posse veio como uma pá de cal num terreno já bem maltratado.
Me refiro à sua intenção de “acabar com políticas de diversidade, igualdade e inclusão no governo”. Intenção explicitamente reforçada na posse de 20 de janeiro, quando afirmou, dentre outras sinalizações, “que o governo reconhecerá apenas dois gêneros: masculino e feminino”.
O terreno maltratado ao qual me refiro diz respeito a uma suposta onda de retrocesso quanto à implementação de políticas de diversidade e inclusão por empresas norte-americanas desde 2023.
Ford, Amazon, Microsoft, Walmart, Meta e, mais recentemente, McDonald’s são algumas das empresas que anunciaram redução de investimentos na área.
Assim, parece que estamos revivendo sentimentos coletivos, da preocupação ao pânico generalizado, mas com um novo elemento particular: “Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI)” tornou-se uma indústria dentro da indústria, tendo esses sentimentos uma causa dupla.
Por que estamos nos preocupando?
A primeira causa da preocupação é a reação dos profissionais que trabalham nesta indústria.
De funcionários dos departamentos de DEI/RH nas empresas a todo o ecossistema composto por consultorias, pesquisadores e especialistas autônomos, esse suposto backlash pode significar a perda de seus empregos ou negócios.
Natural que haja esta preocupação.
Mas a segunda causa se forma pela existência em si da agenda DEI: a preservação de direitos de grupos historicamente vulnerabilizados.
Afinal, Diversidade, Equidade e Inclusão pode ser entendida como uma tradução em linguagem corporativa para a adequação de políticas empresariais às demandas sociais por plena garantia de direitos a todas as pessoas e grupos, incluindo direitos ligados ao trabalho, mas não apenas.
De acordo com Ricardo Sales (2022), especialista no tema e CEO da Mais Diversidade,
“[...] as políticas de diversidade chegaram ao Brasil nos anos 1990, inicialmente em filiais de multinacionais norte-americanas, que passaram a reproduzir localmente as práticas desenvolvidas nas matrizes. [...] As empresas brasileiras dedicaram mais atenção ao tema a partir dos anos 2010, período em que o meio empresarial avança em torno de iniciativas coletivas. Ainda nesse período, cresce no Brasil a atuação de consultorias especializadas e profissionais voltadas ao endereçamento de políticas e práticas de inclusão.”
A luta por direitos, no entanto, é muito anterior à existência de “DEI” e sempre foi historicamente assimétrica.
Grupos de oposição a ideias de proteção a direitos sempre existirão.
Quer exemplos?
Nos mesmos Estados Unidos dos anos 90, que viu alguma prosperidade na luta pelos direitos civis, como o aumento de ações afirmativas tanto pelo governo quanto por iniciativas em empresas privadas (como a IBM), a Califórnia foi um dos estados que liderou a ofensiva contrária.
A Proposta 209, aprovada em 1996, proibia a Universidade da Califórnia e outras entidades estatais de utilizar raça, etnia ou sexo como critérios no emprego público, na contratação pública e na educação pública. O crescimento da ideia de “meritocracia” também se deu no mesmo contexto opositivo às ideias de maior inclusão.
No Brasil dos anos 2000, algumas conquistas também não foram imunes à resistência. O Estatuto da Igualdade Racial de 2010, por exemplo, viu na grande imprensa uma resistência à sua própria existência e às diretrizes que propunha. Podemos citar também a Lei de Cotas para pessoas com deficiência, promulgada ainda em 1991.
Um estudo aponta que as “empresas de um modo geral resistem à contratação de pessoas com deficiência, selecionando, dentro de um repertório de estratégias defensivas já relativamente institucionalizadas, aquelas que percebem como mais adequadas para retardar o enquadramento na lei de cotas e, se possível, evitar fazê-lo. Além de parcial, a inclusão assegurada pela lei é excludente. A seletividade incrustada nas contratações realizadas tende a discriminar as pessoas com deficiências mais graves, como os cegos, os surdos, os doentes mentais e os cadeirantes.”
E o contrário também é verdadeiro.
Em tempos de ameaças a retrocessos, podemos citar o próprio Brasil desde 2023, com a luta por direitos sendo fortalecida por episódios como a criação da Lei da Igualdade Salarial entre homens e mulheres, o movimento pelo fim da escala 6x1 tradicionalmente composta por trabalhadores de grupos vulneráveis como pessoas negras, e a própria criação inédita da primeira Secretaria Nacional dos direitos das pessoas LGBTQIA+.
Ou seja, toda ação tem, teve e sempre terá uma reação.
Assim, é fundamental contextualizar este movimento de backlash empresarial norte-americano ao contexto mais amplo de aumento da polarização político-social.
Em particular no espectro de uma extrema direita que, historicamente, possui como uma das agendas o combate a direitos de grupos vulnerabilizados, como mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e LGBTQIA+.
Países como Itália, Hungria, Polônia, o governo Trump nos Estados Unidos (em seu segundo mandato em 2025) e movimentos mais recentes na América Latina, como Peru, Argentina e o próprio Brasil, particularmente no período do governo Bolsonaro, vêm insurgindo em deslocamentos para governos cuja agenda neoliberal retoma ou amplia a repressão a movimentos sociais por direitos humanos.
Por isso, penso que o futuro que nos aguarda é uma sincronia de retorno (ou início, para alguns de nós) na luta pelo direito à não-discriminação.
Pelo direito à não-discriminação e o futuro de DEI
De acordo com o estudo “Diversidade e Discriminação: Uma Discussão Necessária”, realizado pelo Tribunal de Justiça do Maranhão,
“o direito da antidiscriminação começa a afirmar-se no pós Segunda Guerra Mundial não só como iniciativa, no plano institucional internacional, desencadeada pelo racismo dos regimes nazifascistas, como no interior de diversos ordenamentos jurídicos. Nutrido pelas lutas dos movimentos sociais, dos direitos civis da população negra nos Estados Unidos, dos direitos das mulheres, das pessoas com deficiência, dos povos indígenas e das pessoas LGBTQIA+ mundo afora, e das lutas anticolonialistas, o direito da antidiscriminação se afirma, se espraia e se robustece. Neste cenário, desigualdades e diferenças convocam respostas do direito da antidiscriminação tanto no âmbito público estatal, quanto no âmbito social e privado.”
É claro que os objetivos de programas de diversidade não são modismos, e isso, de alguma forma, independe de como se nomeia o departamento responsável pela garantia de direitos nas operações empresariais.
Não me entenda mal!
Como profissional de DEI, pude claramente constatar que a criação de uma área denominada para este objetivo foi, em si, um importante passo para a visibilidade sobre este tema.
O que quero dizer é que o que chamamos de “diversidade e inclusão”, incluindo a forma como seus programas e processos são estruturados, atende a uma lógica própria que pode, claro, sofrer retaliações. Mas que a resistência e adaptação sempre foram elementos familiares a quem luta por esses direitos - e, talvez agora, muitos profissionais corporativos estejam experimentando mais vividamente, ou pela primeira vez, estes sentimentos.
Peguemos os exemplos das empresas citadas no início.
“DEI” pode significar tanta coisa em termos de iniciativas concretas, que um exercício interessante para acalmar a alma e redirecionar energia de forma mais assertiva é se aprofundar. Afinal, no que exatamente essas empresas estão mexendo?
Um spoiler:
Estrutura Organizacional: Microsoft descontinuou o departamento de DEI, mas manterá políticas iniciadas ainda em 1986, quando da criação de grupos de afinidade;
Geração e Análise de Dados: Ford irá se retirar de pesquisas externas de cultura e que “irá se concentrar em cuidar dos funcionários e clientes em vez de comentar publicamente questões polarizadoras";
Redução de políticas específicas: Amazon irá transformar políticas setoriais, como as específicas para a comunidade LGBTQIA+, em políticas de inclusão mais genéricas;
Contratação e Relação com Fornecedores: Meta encerrará programas de contratação, treinamento e escolha de fornecedores.
A Meta, inclusive, foi bastante além.
As declarações recentes de flexibilização sobre checagem dos fatos postados por usuários no Facebook e Instagram (as redes mais usadas por brasileiros, diga-se de passagem) demonstram um exemplo que classicamente não se categoriza no cardápio de objetivos e ações realizadas pelos departamentos de DEI nas empresas.
Para além de processos de contratação, treinamentos e grupos de afinidade, a observância sobre o direito à não-discriminação deveria ser o ponto de partida para todo profissional que busque avançar sobre o tema no ambiente privado, independentemente do nome que se dê ao seu departamento.
No caso da Meta, isso significa a ingerência sobre seus produtos.
Afinal, alerta a Justiça Global,
“sob o pretexto de promover a liberdade de expressão, as mudanças colocam em risco grupos que já têm seus direitos estruturalmente violados, abrem espaço para desinformação e discurso de ódio, enfraquecem anos de esforços globais por um ambiente digital mais seguro, inclusivo e democrático.”
E, claro, este movimento da Meta está diretamente conectado ao contexto sócio-político que descrevi, particularmente à nova era Trump.
Por aqui, no Brasil, a Advocacia-Geral da União entrou com notificação extrajudicial à Meta pela proteção aos direitos dos brasileiros.
Nela, a AGU afirmou que "importa destacar, sobretudo, quais providências que vêm sendo e que serão adotadas a respeito do dever de cuidado com relação à coibição de violência de gênero, proteção contra crianças e adolescentes, prevenção contra racismo, homofobia e transfobia, prevenção contra suicídio, óbices a discurso de ódio, dentre outros temas de direitos fundamentais".
Por fim, a luta pelo direito à não-discriminação ganha eco numa importante agenda internacional: a chamada “direitos humanos e empresas”.
De acordo com o Institute for Human Rights and Business (IHRB), o “avanço da diversidade no ambiente de trabalho” é considerado um dos “Top 10 Issues” para 2025.
“Os críticos rotulam as ações corporativas para promover uma maior diversidade como divisivas ou até mesmo discriminatórias, e os investidores ameaçaram desinvestir ou destituir os quadros superiores que implementam as políticas de DEI. [...] A defesa da promoção da diversidade, da equidade e da inclusão não deve basear-se apenas no desempenho financeiro. O fato é que as políticas destinadas a moldar organizações mais diversificadas não prejudicam os negócios e podem proporcionar benefícios reais para os trabalhadores, a sociedade e os resultados financeiros.”
Portanto, convido você, profissional ou entusiasta do tema “diversidade e inclusão” nas empresas: vamos nos organizar.
Resistência se combate com adaptação.
E, de adaptação, entendemos bem.