Me lembro a primeira vez que percebi o trabalho impactando minha saúde mental.
Era 2009, e ainda não usávamos essa expressão.
Havia me tornado gerente muito jovem numa multinacional, existia alguma expectativa da empresa sobre o crescimento na região que eu liderava e os recursos eram limitados.
No fim, deu certo. Mas não sem eu conhecer um “surto de psoríase”: semanas com lesões chatérrimas em ambos os pés, desencadeadas por um pico de stress até então inédito em minha carreira.
Estudos sobre Saúde Mental e Trabalho ganham impulso particular a partir de 1970, graças a uma série de mudanças: revolução tecnológica, interdependência global das sociedades econômicas e políticas, reestruturação produtiva, o capital financeiro circulando com mais desenvoltura, geração de um novo sistema de comunicação digital, entre outras.
A influência do trabalho sobre a saúde mental das pessoas pode vir de inúmeros fatores e situações, desde a exposição a agentes tóxicos, altos níveis de ruído e situações de risco à integridade física até a formas de organização do trabalho e políticas de gerenciamento que desconsideram os limites psíquicos do trabalhador.
De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2001), entre os principais contextos geradores de sofrimento em saúde mental estão, dentre outros:
a falta de trabalho ou a ameaça de perda de emprego;
o trabalho desprovido de significação, sem suporte social, não reconhecido;
ambientes que impossibilitam a comunicação espontânea, manifestação de insatisfações e sugestões dos trabalhadores em relação à organização;
fatores relacionados ao tempo, o ritmo e o turno de trabalho;
jornadas longas de trabalho, ritmos intensos ou monótonos, submissão do trabalhador ao ritmo das máquinas;
Ou seja, mesmo aqueles que se encontram em uma situação aparentemente privilegiada, com vínculos de trabalho estáveis, podem experienciar e a insegurança e a competição próprias de um sistema que reproduz essa lógica.
Então, para onde estamos olhando em 2025?
Meio milhão de pessoas. Me lembro quando guardei esse número pra responder o tamanho da população de Juiz de Fora, cidade em que cresci.
Foi esse o número de pessoas afastadas por transtornos de saúde mental no trabalho em 2024 no país: o maior em pelo menos 10 anos. Uma cidade inteira de médio porte sem trabalhar porque adoeceu.
O número assusta, mas assusta principalmente suas causas. O Brasil já é considerado o país mais ansioso do mundo.
Mas quais fatores geram os quadros que compõem não apenas estes afastamentos formais, mas milhares de outros casos não relatados Brasil afora?
Quais elementos sugerem um direcionamento mais realista para tratar da “epidemia” de desgaste da saúde mental no trabalho no Brasil?
Vejamos alguns.
ASSÉDIO MORAL E SEXUAL
Levantamento feito pela KPMG mostra que 1 a cada 3 pessoas relataram ter sofrido algum tipo de assédio no último ano - mas 92% das pessoas que sofreram assédio não relataram o ocorrido.
A pesquisa aponta: o medo da retaliação e da exposição, ao lado da crença de que o caso não seria investigado, estão entre as principais motivações.
Não há no Brasil uma legislação única para regulamentar todos os tipos de crime de assédio. Isso porque essa violação se configura em diferentes naturezas, mais ou menos graves, e também ocorre em circunstâncias e especificidades distintas.
Porém, existem normas jurídicas que preveem a punição para quem prática esse ato. Um exemplo é o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940) e a Lei nº 13.718/2018, que determinam punição para o assédio e importunação sexual.
A ratificação da Convenção 190 da OIT, que reconhece violência e assédio no trabalho como violações, também segue em debate no Brasil desde 2023.
💡 Quem mais sofre com isso? Mulheres.
Assédio Sexual: 72% das denúncias são de mulheres.
JORNADAS EXAUSTIVAS
Da crescente mobilização sobre a revisão da escala 6x1 até a "tendência” importada a respeito da escala 4x3 em escritórios de multinacionais (muitos em testes voluntários, apesar do modelo estar também sendo discutido em propostas legislativas nacionais), o trabalho em excesso se tornou pauta recorrente na vida dos trabalhadores brasileiros.
Mas, aponta a Central Única dos Trabalhadores, o olhar para a redução da jornada ganha contornos específicos e importantes quando se trata da questão de gênero. Em uma sociedade que ainda mantém em sua estrutura o machismo, o patriarcado, a misoginia, elementos que fazem com que a mulher ainda seja a maior responsável pelo cuidado doméstico, debater a redução de jornada é, em especial, tema que impacta diretamente na vida das mulheres.
💡 Quem mais sofre com isso? Mulheres. Em particular, mulheres negras. Dupla Jornada: 83% das mulheres dizem conciliar o emprego com tarefas domésticas e cuidados com idosos e crianças
REMUNERAÇÃO INADEQUADA
Estudo recente trouxe à tona um dado preocupante para o mercado de trabalho brasileiro: 58,7% dos profissionais consideram a remuneração inadequada como a principal causa de estresse em seus ambientes de trabalho.
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Quem mais sofre com isso? Mulheres. Em particular, mulheres negras.
Remuneração Adequada: mulheres ganham 19,4% a menos que os homens no Brasil. E mulheres negras ganham o equivalente a 66,7% da remuneração das mulheres não negras.
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
Me lembro da posição clara de uma procuradora-geral, durante uma audiência que promovemos para debater a política nacional de direitos humanos e empresas: “Se não houver combate à reforma trabalhista de 2017, não há como evoluir nessa discussão".
A “uberização” (ou "plataformização") é fruto disso. Ela significou, sobretudo, a instituição de novas formas de controle e a atualização de velhas formas de organização.
O relatório "A economia do burnout: pobreza e saúde mental”, divulgado pela Organização das Nações Unidas, aponta que o trabalho precário agrava ainda mais a saúde mental.
Colaboram para isso o medo do desemprego, a falta de poder de negociação com os patrões, baixos salários e jornada de trabalho, que impossibilita o equilíbrio saudável entre vida pessoal e profissional.
💡 Quem mais sofre com isso? Pessoas negras.
Informalidade: 46,6% de homens negros e 46,8% de mulheres negras ocupam posições informais, contra 33,3% de homens brancos e 34,5% de mulheres brancas.
Plataformização: 75,2% de motoristas e entregadores são homens negros
REALIZAÇÃO PESSOAL
Muitos pensadores, especialmente da tradição marxista, veem o trabalho como um campo de conflito entre as classes dominantes e as dominadas.
Nesse cenário, a realização pessoal através do trabalho seria um luxo para poucos, enquanto a grande maioria enfrenta um cotidiano de exploração e alienação.
Quem se afeta?
De forma geral, todos nós.
O impacto do modelo de trabalho baseado na produtividade inerente ao sistema capitalista afeta qualquer um que não seja dono do capital, e mesmo estes não estão totalmente imunes.
Há graus distintos e efeitos bem diferentes desse impacto, como vimos, a depender não apenas das características da indústria, da empresa, do formato de trabalho, mas dos grupos afetados.
No caso dos quase 500.000 afastamentos pelo INSS em 2024, por exemplo, a maioria é mulher (64%), com idade média de 41 anos, e com quadros de ansiedade e de depressão. Elas passam até três meses afastadas do trabalho.
Segundo o último Censo, as mulheres mantêm financeiramente 49,1% dos lares brasileiros. E a maioria está na faixa etária a partir de 40 anos, a mesma idade média dos afastamentos.
Ou seja, combater os efeitos nocivos à saúde mental no trabalho passa por compreender em profundidade as características psicodinâmicas dos diferentes grupos sociais afetados, mesmo que dentro da mesma estrutura organizacional.
Há luz no fim do túnel?
Os efeitos do trabalho na saúde mental não significam uma coisa só, não tem uma origem só e não repercutem de um único jeito em todos.
Por mais que o discurso corporativo fale atualmente de seus investimentos na criatividade e na inteligência emocional dos sujeitos, o que se busca não é a liberdade de criação, mas sim o uso de sua subjetividade como instrumento de manipulação e controle do processo de trabalho.
Proteger a saúde mental de seus funcionários passa a migrar de um campo voluntário, de elaboração de programas que apenas tangeiam a superfície do problema, para o debate público regulatório.
O exemplo mais recente, no Brasil, talvez seja a atualização da Norma Reguladora 1 (ou NR1).
As Normas Regulamentadoras (NRs) são um conjunto de regras relativas especificamente à segurança e saúde no trabalho no Brasil.
Elas foram estabelecidas e são responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego, devendo ser seguidas por todas as empresas que possuem empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Apesar de terem força de lei, as NRs nem sempre são cumpridas e, talvez isso explique o alto índice de afastamento pelo INSS de trabalhadores com dores de diversas formas.
Atualmente, há 38 NRs vigentes, abordando temas diversos. A NR1 passará a exigir que as empresas implementem planos de ação com medidas preventivas e corretivas, como:
Reorganização do trabalho para reduzir a sobrecarga de tarefas e melhorar a qualidade de vida dos colaboradores;
Promoção de um ambiente saudável de trabalho, com foco na melhoria das relações interpessoais e do bem-estar geral;
Ações contínuas de monitoramento e ajustes para garantir que as medidas adotadas sejam eficazes.
Em vigência a partir de 26 de maio, as empresas serão obrigadas a identificar riscos psicossociais e implementar as medidas acima, garantindo que não adoeçam mentalmente devido à sobrecarga de trabalho, assédio moral ou sexual e ao estresse em ambientes tóxicos.
E o futuro?
Os problemas e contradições na "gestão de saúde mental” surgem quando os supostos benefícios estão mais relacionados ao sistema de controle da organização do que a uma real preocupação com a saúde do trabalhador, buscando "cobrir as falhas” desse sistema e atuando em cima dos efeitos da organização do trabalho.
Embora a presença de sintomas se mostre como condição necessária para detectar uma doença mental, sua ausência não significa a constatação de Saúde Mental. Portanto, é preciso ir além da aparência do fenômeno para que se possa “escutar” o mal-estar, o sofrimento no qual ainda não há doença manifesta.
Ou seja, falar de saúde mental, incluindo no ambiente de trabalho, é falar, antes, essencialmente sobre a efetiva garantia dos direitos do trabalho, do direito à não-discriminação, do direito a um meio ambiente sano e saudável (em todas as suas dimensões), do direito à saúde e do direito à dignidade humana.